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quarta-feira, 9 de junho de 2010

Q saudade!!!

O beIjO NO aSfaltO: lINguagem, perSONageNS, gêNerO
josé francisco Quaresma (uel)
reSumO: É comum ver atribuído a Nelson rodrigues o título de pioneiro da moderna dramaturgia brasileira. Sua arte distinta é sustentada por uma linguagem nova. em O beijo no asfalto essa lingua- gem evolui e alcança uma forma sintética, com semântica particular, que empresta aos diálogos das personagens uma constituição absoluta e precisa, revelando-se fundamental no sentido de reforçar a singularidade de sua escrita. Neste trabalho, além de se observar a questão acima, buscar-se-á aludir a questões semiológicas e examinar, a partir da personagem protagonista, a qual o autor denomina herói, o motivo que o faz designar sua obra como tragédia carioca.
palaVraS-CHaVe: dramaturgia brasileira, Nelson rodrigues, O beijo no asfalto.
Nelson rodrigues (1912-1980) atinge o sucesso, em 1943, com Vestido de noiva, seu segundo texto teatral, cujo valor o alçou à categoria de poeta e tornou a obra refe- rência histórica do teatro brasileiro. entretanto, nos anos seguintes, com a produção de novas peças, é imediatamente ridicularizado pela crítica, acusado de pequeno bur- guês neurótico, imoral e obsessivo (lINS 1979: 163).
De acordo com magaldi (1992: 143), O beijo no asfalto foi escrito para a companhia teatro dos Sete, a pedido da atriz fernanda montenegro e teve sua estréia no rio de janeiro no ano de 1961, sob direção de fernando torres. portanto, observa-se um autor que compõe para ser encenado. De livre lavra ou sob encomenda, um novo texto, salvo percalços causados pela censura, deve rapidamente partir para sua com- plementação cênica (magalDI 1992: 12).
Nelson rodrigues é autor maduro ao escrever O beijo no asfalto, seu décimo tercei- ro texto dramático, cujo enredo pode ser assim descrito: um homem da rua perde o equilíbrio, cai e é atropelado por um ônibus. um outro homem, transeunte (arandir), socorre o acidentado, que na agonia da morte lhe pede um beijo. ele atende aquele último pedido e beija no outro a morte que se aproxima. assistem à cena o sogro de arandir (aprígio), alguns populares e um repórter de polícia (amado ribeiro). este, mancomunado com um delegado de polícia (Cunha), articula a partir do episódio um
Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários
Volume 14 (Dez. 2008) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa
josé francisco Quaresma (uel) 57 O beijo no asfalto: linguagem, personagens, gênero
romance de homossexualidade e de crime, acusando arandir, que é aos poucos en- volvido pela calúnia, cercado pela zombaria e desprezo, primeiro dos estranhos e, depois, dos que lhe são íntimos. Afinal, também de si próprio se envenena e passa a duvidar do significado de seu gesto. Vê-se rodeado de olhos que o distinguem e dedos que o apontam. Devido ao clima de obsessão, arandir abandona o emprego, refugia-se num hotel ordinário e envia recado para a mulher (Selminha) ir ao seu en- contro. Convite negado, quem chega é a cunhada (Dália) e, em seguida o sogro (aprí- gio). Este, após expulsar a filha do recinto revela a Arandir um amor incontido e o mata a tiros.
É impossível deixar de atribuir a Nelson rodrigues o papel de renovador da lite- ratura dramática brasileira, cujo gênio influenciou muitos outros dramaturgos, não somente quanto ao aspecto da mudança temática, porém, notadamente quanto à expressão verbal que reflete a linguagem coloquial. Sábato Magaldi, estudioso da obra do autor, destaca a singularidade de sua escrita:
enquanto os dramaturgos da geração anterior adotavam um diálogo artificial, com um tratamento diverso da linguagem corrente, ele restringiu a expressão cênica a uma absoluta economia de meios, conseguindo de cada vocábulo uma ressonância admirável. tem-se a impressão [...] que as palavras só poderiam ser as que se encontram ali, como uma cadeia de notas exatas, as únicas capazes de obter o maior rendimento rítmico e auditivo. (magalDI 1997: 218)
encerradas as fases das peças denominadas psicológicas e míticas, de acordo com a organização efetuada por Sábato magaldi (1992: 01), o autor volta-se para a fase que denominou tragédias cariocas e, então, intensifica os aspectos da singularidade da escrita ao adotar mais profundamente os prosaísmos do cotidiano. a inovação advinda da utilização da linguagem corrente, coloquial, se manifesta nos diálogos das personagens que, antes de alcançar a cena teatral se institui como literatura dra- mática renovadora. assim, ao utilizar a linguagem simples das conversas do homem comum, com o uso de gírias, modismos e, mesmo imperfeições gramaticais, como salienta Célia berrettini (1980: 160), o autor avança para o emprego de frases incorre- tas, réplicas incompletas, por vezes interrompidas, com espaço para monossílabos, exclamações ou interrogações, algumas nem sempre respondidas, o que, no caso de O beijo no asfalto, contribui sobremaneira para a atmosfera de suspense, de acordo com o trecho abaixo:
amaDO: (feroz e exultante) D. Selminha, o banho é um detalhe mas que basta! pra mim basta! O resto a senhora pode deduzir.
SelmINHa: (lenta e estupefata) O senhor quer dizer que meu marido!... amaDO: (forte) exatamente! CuNHa: (também feroz) Seu marido, sim! Seu marido! batata! (Selminha
olha, ora um, ora outro. está lívida de espanto) amaDO: (ofegante) Ou a senhora prefere que eu fale português claro? SELMINHA: (que se crispa para uma crise de histeria) Prefiro. Fale, sim! Fale
português claro!
Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários
Volume 14 (Dez. 2008) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa [56-65]
josé francisco Quaresma (uel) 58 O beijo no asfalto: linguagem, personagens, gênero
amaDO: bem. É o seguinte. CuNHa: (bestial) escracha! escracha que eu já estou de saco cheio! (rODrIgueS 2004: 59)
percebe-se, portanto, na forma de construção do texto uma escrita sintética, or- ganizada numa atmosfera de vibrante tensão. talvez essa objetividade tenha con- tribuído, conforme expõe o crítico e psicanalista Hélio pellegrino (1989: 360-1) para a utilização do “diálogo sincopado ou policetado, sólido e nervoso”, cuja semântica tem a capacidade de agir como uma “cirurgia de alta precisão”, conforme expõe o seguinte fragmento:
DÁlIa: Olha arandir! (Arandir aparece. Vem cansado e febril. Selminha lança- se nos seus braços).
SelmINHa: (na sua ternura ansiosa) Demorou, meu bem!
araNDIr: a polícia, sabe como é. (Selminha passa a mão pelo rosto do marido)
SelmINHa: (amorosa) pálido! (Selminha tira o lenço do marido e enxuga o rosto)
araNDIr: morto de sede! SelmINHa: (para a irmã) Água! araNDIr: polícia é uma gente que. Dália, meu anjo. Água, sim? SelmINHa: (para a irmã) gelada. araNDIr: (para a cunhada) gelada. DÁlIa: está suado. SELMINHA: Mistura do filtro e gelada. (Dália sai) SelmINHa: tira o paletó. araNDIr: (tirando o paletó) Calor. SelmINHa: gravata. araNDIr: (tirando a gravata) Duas horas lá. (Dália entra com o copo) DÁlIa: fresquinha. (Arandir segura o copo com as duas mãos) araNDIr: (antes de beber) Água linda! (Arandir bebe, de uma vez só.
Devolvendo o copo) Você é um anjo! DÁlIa: Outro? (rODrIgueS 2004: 28-9)

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